sábado, 12 de maio de 2012

Sobre Deus e o fator Deus


O artigo abaixo foi escrito após os atentados de 11 de setembro, enquanto o presidente Bush e articulistas de jornais da América e Europa tentavam justificar um ataque santo, com valores santos.
Já fui julgada tola e limitada por acreditar em Deus. Penso que ainda serei muitas vezes, mesmo que de forma velada e penso que muito se deve ao que Saramago chama 'fator Deus', argumento de superioridde utilizado por muitos para disseminar o preconceito e ódio. Ao contrário de tudo isso, creio que se Deus pudesse ser traduzido verdadeiramente em uma palavra ela seria 'amor'. Tudo que é dito fora disso, não se refere a Ele.
Recomendo a leitura:

Data: 19/09/2001
 José Saramago: O fator Deus
Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um
negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.

Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Crônica - O medo de Clarice

Aparentemente, nada assustava a menina curiosa, que observava os cabelos brancos da personagem da novela. “Pai, por que os cabelos ficam brancos?”, perguntou. “Porque as pessoas envelhecem”, respondeu ele. “E depois?”, continuou a menina. “Depois elas morrem, mas isso leva algum tempo”, revelou o pai.
Aquela conversa fez Clarice passar a temer a morte, porque tiraria dela aqueles a quem amava. Naquela noite, ao notar os cabelos brancos da avó, a menina não conteve o choro. Para acalmá-la, a mãe esclareceu que o fenômeno era natural e não havia razão para temer. No dia seguinte, graças à magia da tintura, os fios brancos deixaram de existir na cabeça de Maria, mas não o medo de Clarice.
Ela pulava o trecho da oração em que a morte era mencionada, e não gostava de túmulos, cemitérios e crisântemos. O tempo passava e Clarice descobria que não era a alvura dos cabelos que definia a hora de cada um. Que o preto de sua cultura não significa luto em outras. Que existem múltiplas maneiras de enxergar a morte. Às vezes, ela chega de forma drástica. Em outras, vem calmamente ao anoitecer. Alguns a buscam, enquanto outros agonizavam à espera. Há o lado cruel da perda, e o divino, da eternidade. Clarice deixou de pular trechos das orações, mas continuou sem aceitar a ideia. Também não sabia o que dizer para consolar as perdas de outras pessoas. Preferia calar palavras em um abraço, que nem sempre tinha coragem de dar.
Aprendeu que existem profissionais preparados para salvar vidas, mas só naquele dia encontrou os que sabiam lidar com a morte. Ao lado, a vizinha lia avidamente um livro grosso. “Sobre o que fala?”, perguntou Clarice. “Sobre cuidados paliativos. Esse é o tratamento que minha tia recebe no hospital”, disse Ana. Clarice nunca ouvira falar daquilo. Sabia que a vizinha cuidava da tia doente. Diziam na rua que não havia cura, o que fazia a garota estranhar a naturalidade da amiga ao comentar o assunto. “Mais tarde vou à enfermaria visitar minha tia. Quer ir?”, convidou Ana, tirando Clarice do devaneio. Receosa, ela aceitou.
No caminho, Ana falava sobre coisas que pareciam irreais. Sobre médicos que reconheciam a própria impotência diante da doença e que, ao invés de estender a vida, preparavam os doentes para lidar com a morte. “Ajudá-la nesse momento é o que tem me confortado”, disse a vizinha. Tudo era muito novo para quem temia a ideia do fim. Clarice ainda refletia quando chegaram à ala de internação. Luiza despertou com a chegada da sobrinha. Em sua expressão, um misto de cansaço e serenidade.
De repente, a doutora Sophia entra no quarto. Cumprimenta as garotas, mas dedica toda a atenção a Luiza. Com delicadeza, toma-lhe a mão, no que a paciente pergunta “tem certeza que não há cura?” A médica, sem desviar o olhar da paciente, responde: “Não, mas vamos trabalhar para que você não sinta dor. Vamos cuidar de você, fique tranquila”.
Clarice assistia comovida. Ao sair do quarto, perguntou à médica como ela conseguia lidar com a morte com tanta naturalidade. Sophia, com o mesmo olhar carinhoso, sabiamente disse que aprender a encarar a morte ajudava a viver melhor. A garota ouviu em silêncio e retornou ao quarto, onde Ana já se despedia da tia A mulher receberia alta no dia seguinte, para continuar o tratamento em casa. Luiza, então, falou: “Também já tive medo. Sabe, queria viver mais, mas a doença não vai deixar. Não me assusto, porque o que tive valeu a pena”.
O olhar de Luiza e os cuidados da médica marcaram Clarice, que compreendeu a naturalidade do envelhecer e do morrer. Numa rua próxima ao hospital, a garota comprou um quadro colorido. Era a lembrança que levaria, não da morte anunciada de Luiza, mas sim da vida que a fez chegar até ali e do dia em que o medo da morte foi enfim superado.

Cuidados Paliativos

Os princípios da medicina que prioriza o cuidar ao invés da cura e ensina como lidar com o fim da vida


À primeira vista, a enfermaria do décimo segundo andar do Hospital do Servidor Público de São Paulo parece um setor como outro qualquer. Talvez porque a diferença não esteja na estrutura, mas sim nos princípios de uma medicina ainda pouco conhecida, chamada de cuidados paliativos. A finalidade da luta não é prolongar a vida a todo custo, mas garantir que haja dignidade até o último instante.
Desde às nove horas da manhã, a equipe médica da enfermaria segue a rotina de visitar os pacientes. É o momento de ouvir. A última a ser visitada é Mariza. O medo marca o olhar da mulher de cinquenta anos, que chegara no dia anterior. A médica Maria Goretti Sales Maciel, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, aproxima-se da beirada do leito e toma com cuidado as mãos da paciente. Com olhar carinhoso, pergunta o que ela tem sentido e a tranquiliza com o compromisso de cuidar dela.
Esse tipo de atendimento surgiu nos anos sessenta por iniciativa da médica britânica Cicely Saunders. Em 1990, a prática foi recomendada pela Organização Mundial da Saúde e, em maio, foi reconhecida como especialidade médica no Brasil. A Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Sevidor foi criada em 2002 pela Dra. Maria Goretti. Todo ano, cerca de cinquenta médicos residentes passam pela Enfermaria e aprendem os conceitos da prática paliativa. A formação em Medicina da Família ajudou Maria Goretti a ter uma visão mais ampla sobre o doente e a entender os princípios da medicina que prioriza o cuidado ao invés da cura.
“O médico pode encarar ou fugir pela tangente, prometendo ao paciente coisas que não vai poder cumprir. Quando resolve conversar e explicar, acaba ficando melhor. É saudável para o médico esse contato com a terminalidade, com a impotência, com a realidade de que nem sempre a vida pode ser salva. Na verdade, só é preciso aprender a lidar com a vida, porque a morte faz parte dela”, afirma a médica. No Brasil, existe um serviço de cuidados paliativos para cada quatro milhões e meio de pessoas. O país com melhor padrão de atendimento é o Reino Unido, onde há um serviço para cada grupo de quarenta mil pessoas.
A decisão conjunta marca a ação dos paliativistas. “A gente tem que ser treinado para ser capaz de ouvir o doente e decidir junto o que pode ser feito”, afirma Maria Goretti. Após as visitas, os médicos discutem sobre a situação específica de cada um dos pacientes. Ayrton, por exemplo, chegou ao hospital com problemas gastrointestinais. O caso, aparentemente simples, se complicou e, se o doente não fosse submetido a uma sessão de diálise para estabilizar o quadro renal, poderia morrer. Apesar disso, a decisão não era da equipe médica, mas do paciente. Mesmo sem poder influenciar, a residente Ana Beatriz di Tonmaso torcia confiante para que a intervenção ocorresse. “Olho para ele e acho que ainda tem vida para viver. Eu sinto isso. Pelo menos, para conhecer a casa que ele construiu”.
A preocupação demonstrada pela jovem médica reflete a visão paliativa. Aprender a olhar a história de cada um ajuda a amenizar o dia-a-dia na enfermaria. “Até o prontuário, que geralmente é algo técnico, aqui é diferente. Personaliza o doente. Mesmo que depois se encontre um quadro clínico semelhante, você ainda lembrará da pessoa”, conta o residente em geriatria, Fernando Henrique de Paula.
A paciente Marília Conceição Procópio é a caçula de oito irmãos. O câncer no pulmão a trouxe ao hospital e, depois de duas semanas no ambulatório, foi transferida para a Enfermaria. A mineira, que chegou ainda criança a São Paulo, dedicou a vida à Educação. Aposentada há três anos, participou do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e trabalhou como professora de pré-escola, ensino fundamental e médio. Dedicou vinte de seus sessenta anos ao cargo de diretora de escola. “Quando comecei a pensar meu projeto de vida, sair, passear, adoeci. Daí, acabou. Perdi a sequência. Mas, se Deus me ajudar, quem sabe? Para Ele, nada é impossível”.
A compreensão a respeito da morte vem aos poucos. “São conversas longas e frequentes, nas quais a pessoa começa a entender o que é a doença, porque não existe uma condição de cura, o que estamos fazendo e o porquê de estarmos fazendo. É preciso deixar claro que a ação é minuciosamente estruturada para que a pessoa tenha qualidade de vida neste processo de evolução final”, explica o médico Ricardo Tavares de Carvalho, presidente da Comissão de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
Entendendo a morte, pacientes e doutores sentem o afeto que marca o ato de cuidar e aprendem na prática o significado mais amplo da vida, refletido no olhar sereno e nas palavras de sabedoria de Marília. “Os médicos e os funcionários têm muito carinho com a gente e isso tudo ajuda na recuperação, porque a doença é muito triste. Eles nos dão a mão, reforçam e enriquecem a gente. Daí você começa a entender que tudo é por Deus, que não adianta chorar e ficar triste. A doença existe. Não tem jeito de tirar. É só entregar para Deus e tentar caminhar”.






Por Géssica Brandino

domingo, 31 de janeiro de 2010

Deficiência por Mário Quintana*

"Deficiente" é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.
"Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui.
"Cego" é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.
"Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.
"Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.
"Paralítico" é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda. "Diabético" é quem não consegue ser doce.
"Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer.
E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois:
"Miseráveis" são todos que não conseguem falar com Deus.
"A amizade é um amor que nunca morre. "

*(escritor gaúcho 30/07/1906 - 05/05/1994)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Para lembrar o que importa

Para dar início as atividades desse blog em 2010, abro espaço para o texto da jornalista Eliane Brum, que resume meu sentimento no início desse ano e nos mostra aquilo que realmente importa na vida.
Assim como a repórter da revista Época, também sigo questionando a falta de ação do homem. Mais do que qualquer fenômeno climático, é a omissão que nos leva a presenciar cenas como as de Angra, São Paulo, Haiti. Caso nada seja feito, continuaremos a ver tudo se repetir, em diferentes proporções. Em um momento de dor, talvez o mundo sinta e veja a necessidade de novos rumos. Pois, que venham!


História de amor no Haiti
O que Jeanette disse a Roger, soterrada pelos escombros do terremoto
ELIANE BRUM


Seis dias depois do terremoto, Roger continuava diante das ruínas do prédio onde estava sua mulher, Jeanette, em Porto Príncipe. Não é possível alcançar, só podemos tentar vestir a pele do homem diante do monte de pedras. Debaixo delas, está a mulher que ama. Para todos, morta. Para ele, viva. Roger grita o nome de Jeanette. Diante de tantas dezenas de milhares de mortes, seu drama era apenas mais um. Mas não existe mais um. Existe o mundo inteiro em cada um. A vida só faz sentido se o homem com os olhos vermelhos fixos nas pedras for ele e todos nós.
De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros. “Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor. Jeanette tem algo a dizer. O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito. Nunca se esqueça disso!”.
Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar.
Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto.
O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.
Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.
O que você diria se fosse Jeanette?
A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é. Inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação.
Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim. Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.
Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?
Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente. A vida é para hoje, a vida é para já.
Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.
De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.
Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.*
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Este ano começou com muitas tragédias, aqui e no Haiti. Acho que precisamos prestar atenção e aprender com elas. Não basta se comover com o sofrimento do povo haitiano. Nossa solidariedade não se resume aos que podem pegar um avião e ajudar no que for possível. Nem a angariar dinheiro, alimentos e medicamentos. Como mostra João Pereira Coutinho em sua coluna na Folha de S.Paulo de 19/01, as catástrofes se equilibram equitativamente pelo planeta. O que não é equitativo no globo são a renda e a democracia. Em 1989, um terremoto de 7,1 na escala Richter causou 67 mortes nos Estados Unidos. No Haiti, um terremoto com a mesma intensidade matou – oficialmente – 150 mil pessoas.
Um estudo citado por Coutinho, The Death Roll from Natural Disasters: the Role of Income, Geography and Institutions (A lista da morte por desastres naturais: o papel da renda, da geografia e das instituições), publicado por Matthew Kahn na revista do MIT, em 2005, prova que são a pobreza e a tirania – e não a natureza – que matam. Naquilo que é invenção humana, estamos todos implicados. E, no caso do Haiti, especialmente nós, que comandamos a Minustah, a missão da ONU que supostamente está lá para estabilizar e reconstruir o país.
A série de tragédias deste início do ano não é um prenúncio do apocalipse bíblico ou de alguma outra espécie de fim de mundo mítico. Se o terremoto mata tantos no Haiti – e a chuva aqui – é por conta das escolhas políticas, econômicas e éticas que fizemos. E não porque a natureza ou um Deus cruel está nos matando como uma espécie de vingança pelo mal que causamos ao planeta e a todas as outras espécies. Nosso estilo de vida é que está nos matando, começando pelas vítimas de sempre, os mais pobres. O mal que nos aniquila se origina no nosso livre arbítrio – e só pode ser revertido pela transformação de nossas prioridades. Ser solidário hoje, diante da tragédia, é mais do que chorar diante da TV. É passar a fazer escolhas mais responsáveis, começando dentro da nossa casa.
Chove em São Paulo enquanto escrevo esta coluna. Eu sempre adorei chuva. O barulho das gotas batendo na janela, o vento que sempre a acompanha, o cheiro de terra molhada. Agora, me sinto culpada por gostar. Assim que sou tomada pelo reflexo imediato do prazer, na hora vem a culpa. Porque a chuva que faz bem ao meu bairro de classe média mata alguém na parte mais pobre da cidade. Passo então a imaginar o tamanho do desamparo de uma mãe com seus filhos num barraco a cada vez que começa a chover. De olho no céu, de olho no barranco, sem poder proteger aqueles que ama. Visto a pele dessa mulher que tem medo da chuva que vejo pela janela.
Apenas na madrugada de quinta-feira (21/1) morreram nove pessoas na Grande São Paulo, a região mais rica do país. Porque choveu. A maioria delas soterradas, embaixo de lama. Já são 62 mortos desde o início de dezembro no estado de São Paulo. E são governantes escolhidos por nós que culpam a natureza, “as chuvas em excesso”, pela morte de gente, em pleno século 21, por causa da água que cai do céu. Ou usam a tecnologia para tuitar, como fez José Serra (PSDB): 2010 é “um ano anômalo” no que se refere à quantidade de chuvas. Ainda bem que temos um governador para nos avisar.
O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), diz que devemos ficar “tranquilos”. Não, senhor prefeito, eu não fico tranquila. E acho que o senhor não deveria ficar também. Se eu fosse o senhor ou um dos prefeitos que o antecederam, eu não dormiria à noite porque me sentiria responsável. E mesmo não sendo o senhor nem um de seus antecessores, eu durmo mal porque me sinto responsável. Por que enquanto tento dormir, bem perto de mim e do senhor muitos estão com medo de morrer – e alguns morrem. Por chuva.
Cada um de nós tem sua parcela de responsabilidade, não apenas porque somos responsáveis por quem elegemos com nosso voto, mas pela vida que levamos. As tragédias pelas quais choramos hoje foram causadas não apenas pelas nossas más escolhas no sentido mais amplo, como humanidade num recorte histórico, mas por aquelas que fazemos todo dia, como indivíduos, do excesso de consumo de bens, água e energia à produção e destino do lixo. O papelzinho amassado, a bituca de cigarro ou a garrafa pet jogados no chão pela janela do carro vão entupir o bueiro ou o córrego lá adiante que, sem dar vazão, vai matar a criança na periferia quando a terra desliza e desaba o barranco sobre o barraco. Nossos erros – ou nossa ganância – estão sendo pagos pelos mais indefesos e frágeis entre nós. Aqui e no Haiti.
Quando Jeanette me faz pensar sobre o que realmente importa na minha vida, reafirmo a certeza de que não importa apenas a minha vida. Minha vida só faz sentido, só se realiza, se tornar possível também a vida do outro. Lá. Aqui. Em qualquer lugar. (Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

ELIANE BRUMebrum@edglobo.com.br Repórter especial de ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

I'M SORRY - Greenpeace

Eis alguns rostos que nos lembrarão de Copenhague:
















Copenhague virou Flopenhague

Do inglês, hope significa esperança e flop fiasco. Significados aplicados à COP 15, encerrada hoje, após duas semanas de muitos discursos e nenhum compromisso concreto e conjunto estabelecido pelos líderes mundiais.
Ao longo desses dias, meus olhos estiveram vidrados em Copenhague. Coberturas de revistas, notícias e mais notícias. Tentei ler o máximo possível e, não tenho dúvida, que continuarei lendo mais nos próximos dias. Em alguns momentos, tive a impressão de que os tão costumeiros deslizes de oratória dos presidentes eram mais visíveis do que o objetivo da reunião em si.
Desde o primeiro instante, o pessimismo dos ativistas de organizações ambientais espalhadas pelo mundo era visto por meio de diversas manifestações. Quisera que tais previsões estivessem erradas, mas não foi o que aconteceu. Ambientalistas, vocês estavam certos!
E por que será? Quando se fala em redução das taxas de CO2, entre outros gases responsáveis pelo Efeito Estufa, o primeiro questionamento feito pelas nações é "em quanto isso afetaria meu PIB?". Trocando em miúdos, a economia preocupa muito mais do que qualquer outro problema, mesmo que ele signifique o fim de tudo, mas muitos parecem não terem se dado conta disso. Pobre presidente das Maldivas! No ritmo das negociações, o arquipélogo virará história...
Vi Sarkozy bater os punhos na mesa, Africanos desistirem e tentarem mais uma vez e Lula se esforçando em abrir os olhos dos outros para a gravidade do problema. Simples discurso ou não, gostem ou não, o presidente do Brasil teve coragem para dizer o que fora apontado pela campanha do Greenpeace, "no amanhã poderemos ser cobrados por não termos feito nada para salvar a Terra enquanto ainda era possível fazer alguma coisa para cuidar dela".
Enquanto isso, Obama recebia seu prêmio Nobel da Paz, participava de suas reuniões, Hillary tentava mostrar o interesse do país pelo debate até que o presidente aparecesse, no último instante para, digamos, tentar fazer um milagre na prorrogação, ou pelo menos, dizer que tentou fazer sua parte.

Resumo dos debates em Copenhague
  • Os pobres acusam os ricos
  • Os ricos querem ajudar os pobres a diminuirem suas emissões de gases poluentes. Mas, como ficam as emissões dos países ricos?
  • Os EUA acusam a China, que por sua vez, não se dá ao trabalho de revidar. Pra quê? Para garantir a vida da população mundial e reduzir meu lucro? Os EUA reduziram os deles?
Como ficarão as taxas de emissão de poluentes? qual o futuro do planeta? qual será a parcela de comprometimento que as nações estão dispostas a assumir com a humanidade? Os líderes mundiais deixam Copenhague e o que sinto é a mesma frustração de Lula ao não ver nenhuma destas questões respondida. Ou melhor, sabemos pelo menos qual será o nosso futuro, caso tudo continue como agora.
Em 2010, eles se reunirão novamente para a COP 16 no México... hope or flop?